09 mar Sobre o contrato de trabalho intermitente
Thiago Guedes*
O contrato de trabalho intermitente foi introduzido na CLT pela Lei 13.467/2017, que previu a figura, inicialmente, no dispositivo que trata do contrato individual de trabalho – art. 443 – com inclusão de um parágrafo 3º:
§ 3° Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria.
Pela literalidade da regra, trata-se de contrato de trabalho especial, regido por regras próprias, e, por isso, obrigatoriamente estabelecido formalmente (por escrito) como condição de validade (o que é posteriormente ratificado no art. 452-A).
Da definição, pode-se extrair seus contornos básicos:
- fundamento na descontinuidade da prestação de trabalho;
- manutenção da subordinação;
- alternância de períodos de trabalho e inatividade que pode ser medida em horas, dias ou meses;
- aplicável para qualquer atividade de empregado ou empregador, exceto aeronautas.
A regulamentação foi estabelecida no art. 452-A da CLT. Posteriormente, pretendeu o Poder Executivo uma regulamentação mais específica, via medida provisória (MP 808/2017), cujo texto, no entanto, não foi convertido em lei.
O art. 452-A definiu as seguintes regras:
Art. 452-A. O contrato de trabalho intermitente deve ser celebrado por escrito e deve conter especificamente o valor da hora de trabalho, que não pode ser inferior ao valor horário do salário mínimo ou àquele devido aos demais empregados do estabelecimento que exerçam a mesma função em contrato intermitente ou não.
§ 1° O empregador convocará, por qualquer meio de comunicação eficaz, para a prestação de serviços, informando qual será a jornada, com, pelo menos, três dias corridos de antecedência.
§ 2° Recebida a convocação, o empregado terá o prazo de um dia útil para responder ao chamado, presumindo-se, no silêncio, a recusa.
§ 3° A recusa da oferta não descaracteriza a subordinação para fins do contrato de trabalho intermitente.
§ 4° Aceita a oferta para o comparecimento ao trabalho, a parte que descumprir, sem justo motivo, pagará à outra parte, no prazo de trinta dias, multa de 50% (cinquenta por cento) da remuneração que seria devida, permitida a compensação em igual prazo.
§ 5° O período de inatividade não será considerado tempo à disposição do empregador, podendo o trabalhador prestar serviços a outros contratantes.
§ 6° Ao final de cada período de prestação de serviço, o empregado receberá o pagamento imediato das seguintes parcelas:
I – remuneração;
II – férias proporcionais com acréscimo de um terço;
III – décimo terceiro salário proporcional;
IV – repouso semanal remunerado; e
V – adicionais legais.
§ 7° O recibo de pagamento deverá conter a discriminação dos valores pagos relativos a cada uma das parcelas referidas no § 6o deste artigo.
§ 8° O empregador efetuará o recolhimento da contribuição previdenciária e o depósito do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, na forma da lei, com base nos valores pagos no período mensal e fornecerá ao empregado comprovante do cumprimento dessas obrigações.
§ 9° A cada doze meses, o empregado adquire direito a usufruir, nos doze meses subsequentes, um mês de férias, período no qual não poderá ser convocado para prestar serviços pelo mesmo empregador.
A lei assegura a incidência do princípio isonômico, ao definir que o valor do salário-hora deverá ser o mesmo dos demais empregados da empresa que exerçam a função.
O § 1º trata da convocação, que deverá ser “por qualquer meio eficaz” e realizada com antecedência mínima de 3 (três) dias corridos. O § 2º prevê o direito do empregado de recusar a convocação sem que isso implique quebra de contrato ou afastamento de subordinação (§ 3º).
Caso o empregado aceite a oferta – o silêncio presume a recusa –, e se houver o descumprimento, por qualquer parte, do ajustado (proposta e aceite), há incidência de multa no valor correspondente a 50% da remuneração que seria devida, o que pressupõe salário em sentido estrito e também as proporcionalidades e demais verbas de que tratam o dispositivo.
Pelo § 5º, o período de inatividade não será considerado com tempo à disposição do empregador. Portanto, não gera efeitos pecuniários no contrato. O ponto é polêmico. Outros ordenamentos jurídicos que preveem essa figura contratual, a exemplo do Direito Português, estabelecem uma garantia mínima de pagamento, mesmo quando não há chamamento ao trabalho. Entretanto, considerando tratar-se de modalidade especial de contrato de trabalho, que inclusive prevê a possibilidade de recusa do trabalhador à oferta de serviços, nos parece que não há inconstitucionalidade.
O § 6º prevê as regras de pagamento, incluindo, desde logo, as proporcionalidades de férias e 13º salários. Ou seja, não são acumuladas para recebimento em período posterior, mas desde logo quitadas quando há período de trabalho. O pagamento do repouso semanal, da mesma forma, deve ser feito em destaque, uma vez que o ajuste é de salário-hora. O § 7º obriga o empregador ao fornecimento de demonstrativo no qual as parcelas estão “abertas”, ou seja, a modalidade segue a regra geral do Direito do Trabalho brasileiro e não admite o pagamento complessivo.
INSS e FGTS são recolhidos nas datas previstas em lei e com base no que foi pago no mês, nos termos do § 8º.
Independentemente do período trabalhado, o empregado terá direito a férias de 30 (trinta) dias após 12 meses de contrato, dentro do período concessivo de 12 meses. A lei é lacunosa neste aspecto, mas presume-se que o empregador definirá o período e, neste, não poderá convocar o empregado. Por outro lado, não haverá nova remuneração do período, visto que as férias proporcionais já são pagas a cada período de trabalho.
Essas são as regras gerais. A modalidade ainda não tem sido utilizada em larga escala na realidade brasileira, embora algumas empresas já tenham experimentado o ajuste. Da mesma forma, as polêmicas sobre constitucionalidade e forma de execução não chegaram, de forma estatisticamente relevante, ao Judiciário Trabalhista, embora já tenha sido proferida ao menos uma decisão pelo TST tratando do tema.
A 4ª Turma do TST proveu Agravo de Instrumento e Recurso de Revista de empresa contra decisão do TRT da 3ª Região, que tinha decidido pela nulidade de contratação intermitente. O argumento central da decisão regional foi o de que (i) o trabalho em regime intermitente deve ser feito apenas em caráter excepcional, (ii) para atender demanda intermitente em pequenas empresas, (iii) não sendo cabível para atender posto de trabalho efetivo dentro da empresa, e (iv) a intermitência se refere à função do empregado, e não ao caráter da atividade em si.
A decisão do TST vai no sentido de preservar o conteúdo literal da lei, excluindo interpretações restritivas. Veja-se o seguinte trecho:
Contrastando a decisão regional com os comandos legais supracitados, não poderia ser mais patente o desrespeito ao princípio da legalidade.
A lei define e traça os parâmetros do contrato de trabalho intermitente como sendo aquele descontínuo e que pode ser firmado para qualquer atividade, exceto para aeronautas, desde que observado o valor do salário hora dos demais trabalhadores não intermitentes da empresa.
A decisão regional cria mais parâmetros e limitações, ao assentar que “deve ser feito somente em caráter excepcional, ante a precarização dos direitos do trabalhador, e para atender demanda intermitente em pequenas empresas” e que “não é cabível ainda a utilização de contrato intermitente para atender posto de trabalho efetivo dentro da empresa”.
Ou seja, a Reclamada atendeu a todos os ditames da lei quanto à contratação do Reclamante como trabalhador intermitente, mas o 3º Regional, refratário à reforma trabalhista, por considera-la precarizadora das relações de trabalho, invalida a contratação, ao arrepio de norma legal votada e aprovada pelo Congresso Nacional.
Na doutrina, excessos exegéticos assomam tanto nas fileiras dos que pretendem restringir o âmbito de aplicação da nova modalidade contratual, como nas dos que defendem sua maior generalização e maior flexibilidade, indo mais além do que a própria lei prevê.
Mais adiante, a decisão justifica a introdução do trabalho intermitente como alternativa de inclusão de trabalhadores em regime formal de emprego, ao invés de estabelecer meio de precarização:
Ora, a introdução de regramento para o trabalho intermitente em nosso ordenamento jurídico deveu-se à necessidade de se conferir direitos básicos a uma infinidade de trabalhadores que se encontravam na informalidade (quase 50% da força de trabalho do país), vivendo de “bicos”, sem carteira assinada e sem garantia de direitos trabalhistas fundamentais. Trata-se de uma das novas modalidades contratuais existentes no mundo (junto com o teletrabalho, também introduzido pela Lei 13.467/17), flexibilizando a forma de contratação, prestação dos serviços e remuneração, de modo a combater o desemprego. Não gera precarização, mas segurança jurídica a trabalhadores e empregadores, com regras claras, que estimulam a criação de novos postos de trabalho.
O argumento é, no mínimo, razoável e suficiente para afastar a tese de inconstitucionalidade a priori da nova figura contratual.
Por fim, registramos alguns entendimentos consolidados a partir de consultas que temos recebido:
- Como visto acima, a legislação estabeleceu relativa amplitude à figura do contrato de trabalho intermitente. Trata-se de contatação válida “independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador”. Não há, assim, restrição à atividade ser “meio” ou “fim” e tampouco à natureza do serviço que será realizado.
- É preciso observar que se trata de contrato com finalidade própria, qual seja, a de “prestação de serviços não contínua”, em que haja “alternância” entre períodos de trabalho e de “inatividade”. Como a lei brasileira não se dispôs ao estabelecer quais são os parâmetros temporais que regem a tal “alternância”, há dois caminhos interpretativos de razoável utilização.
O primeiro deles é o de buscar no Direito Comparado o molde para essa figura. Nesse aspecto, nos parece adequada a definição estabelecida no Código de Trabalho Espanhol, que assim prevê no art. 16, item 1:
Artículo 16. Contrato fijo-discontinuo.
1. El contrato por tiempo indefinido fijo-discontinuo se concertará para realizar trabajos que tengan el carácter de fijos-discontinuos y no se repitan en fechas ciertas, dentro del volumen normal de actividad de la empresa.
A los supuestos de trabajos discontinuos que se repitan en fechas ciertas les será de aplicación la regulación del contrato a tiempo parcial celebrado por tiempo indefinido.
A ideia de contratação por “tempo fixo-descontínuo”, que não se repete em datas certas, nos parece perfeita para sintetizar a modalidade. A figura do trabalho intermitente parece contemplar necessidade mais rarefeita, incerta, incompatível com maior previsibilidade temporal. O empregador necessitará do trabalho, isso é certo. Mas não sabe quando, com qual periodicidade e, quando acionado, em que volume de horas.
Outro caminho para identificar as situações de uso no Direito Brasileiro passa pela identificação de que temos tipos contratuais para as “sazonalidades previsíveis”. Com efeito, para as atividades permanentes, em determinados períodos do ano, a nossa legislação possui a figura do contrato de trabalho temporário, previsto na Lei 6.019/74. Ainda, não se presta o trabalho intermitente como espécie de contrato de prova. Para isso, a legislação brasileira contempla o contrato de trabalho a título de experiência.
- Não obstante a pequena amostragem jurisprudencial, a ausência de restrições na lei pode levar a sua aplicação de forma mais abrangente. Ainda assim, por se tratar de modalidade nova, restritiva de direitos, no nosso entendimento convém a adoção de uso mais conservador.
- Se estivermos tratando de uma demanda previsível, com duração de um ou mais meses – e tudo isso puder ser estabelecido a priori – nos parece que o caso não é de trabalho intermitente, mas de trabalho temporário. Digamos que a empresa sabe que sempre nos meses de maio, por exemplo, terá que aumentar o efetivo. Ou que, devido a um ajuste de produção, ou encomenda específica, terá 30 dias de grande incremento de pessoal. Esses dois casos seriam naturalmente cobertos pela Lei 6.019/74.
Vale dizer: não há nada na lei que estabeleça que a duração contínua maior do que 30 (trinta) dias, por exemplo, vá estabelecer a nulidade do contrato de trabalho intermitente. A questão é saber por que a atividade durou mais do que 30 dias.
Um exemplo: se uma indústria contrata um trabalhador intermitente para fazer reparos em determinada instalação, cuja necessidade dependerá de uma deterioração não previsível, é possível que o acionamento para um reparo dure poucos dias e, em outra oportunidade, em caso de dano mais grave, mais do que 30 dias. Mas ambas são hipóteses às quais se aplicaria, com naturalidade, a contratação intermitente.
- Nada impede que seja utilizado o contrato intermitente para atividades que ordinariamente são realizadas na empresa, mas que, em situações imprevistas e pontuais, pode gerar um aumento grande e pontual demanda – por exemplo, para aumentos repentinos e curtos de produção.
A imprevisibilidade, tal qual referida no Direito Espanhol, pode ser utilizada como um bom parâmetro de definição.
- Por fim, por se tratar de um contrato de trabalho especial, é fundamental que sua utilização observe todos os requisitos formais previstos na lei. O descuido com qualquer formalidade tenderá a descaracterizar o contrato-exceção, e trazer a situação concreta à regra geral. Nesse sentido, não apenas o contrato escrito, mas também a observância das regras de convocação, de concessão de férias, de pagamentos, etc.
* Advogado trabalhista. Sócio de Guedes, Pedrassani Advogados. Professor de Direito do Trabalho.