01 abr A pandemia do COVID-19 e as regras municipais, estaduais e federais sobre autorização para funcionamento das empresas
A situação de calamidade pública por que passa o País tem gerado uma profusão de normas de níveis municipal, estadual e federal com impacto direto nas atividades empresariais, desde horário restrito de funcionamento até a própria permissão para abrir as portas.
A excepcionalidade do momento que vivemos demanda olhar especial para as leis, mas não afasta o necessário respeito ao basilar princípio da legalidade, em particular ao regime constitucional de repartição de competências.
O Brasil é organizado a partir do princípio da divisão política entre União, Estados (inclusive DF) e Municípios, independentes entre si e autônomos (Constituição, artigo 18), mas vinculados pela ideia maior de Estado Democrático de Direito (Constituição, artigo 1º). Como pedra angular desta organização está o disposto no inciso IV do artigo 4º que veda a intervenção vertical, salvo nos casos expressos na própria Constituição.
Como parte do citado sistema de repartição de competências, é da União a prerrogativa de legislar em matéria de direito do trabalho (artigo 22, I). Em razão dessa mesma garantia, outras matérias, que não estejam limitadas no artigo 22, podem, residual e complementarmente, ser editadas pelos Estados e Municípios no âmbito de suas competências.
A Constituição também estabelece preceitos especiais nos casos de emergências – estado de emergência, estado de calamidade, estado de defesa e estado de sítio –, cada qual com sua característica e destinação próprias. A emergência pode ser fixada em dois casos específicos, estado de sítio e estado de defesa (artigo 21, inciso V), ambos de competência exclusiva da União.
Restou em aberto o estado de calamidade, preparatório para a decretação do estado de defesa. Há tratamento infraconstitucional sobre o tema, muito especialmente no que diz respeito às consequências econômicas de situações de grave abalo populacional. Em razão disto, o legislador infraconstitucional estabeleceu, ao editar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a possibilidade de União, Estados e Municípios reconhecerem o estado de calamidade para terem maior liberdade de ação do ponto de vista financeiro-administrativo.
Por outro lado, quando a calamidade pública não é de ordem financeira, decorrendo, antes, de desastres naturais, prevalece o disposto na legislação infraconstitucional. A Instrução Normativa n. 02/2016 do Ministério da Infraestrutura “estabelece procedimentos e critérios para a decretação de situação de emergência ou estado de calamidade pública pelos Municípios, Estados e pelo Distrito Federal, e para o reconhecimento federal das situações de anormalidade decretadas pelos entes federativos”.
Decretada a situação de calamidade pública pela Assembleia Legislativa ou Câmara de Vereadores, e respeitadas as disposições da supracitada Instrução Normativa, é necessária sua posterior homologação pelo Governo Federal.
Dito isto, forçoso reconhecer que nos dias presentes vivemos um estado de calamidade decretado por ordem econômica (artigo 65 da LRF) e que tem por mérito e objetivo permitir aos entes maior mobilidade administrativa e financeira para fazer jus aos desafios impostos pelo COVID-19.
É nesse cenário, portanto, que em cada caso se avaliará qual o poder dos Municípios e dos Estados na regulação das atividades locais, bem assim se há nela excessos.
Uma premissa a se respeitar consiste em que, havendo o reconhecimento pelo Estado federado de que a causa da calamidade se espalhou para mais de um município, aquele, e não este, atrairá para si a competência para regrar o estado de calamidade. A mesma premissa valerá para a causa da calamidade abrangente de mais de um Estado federado.
Também em decorrência do sistema pátrio de repartição de competências, na eventual ausência de decreto nacional dispondo sobre a calamidade valerá como regra o decreto estadual, o qual, então, prevalecerá sobre eventual decreto Municipal em tudo aquilo que conflitar com ele.
Para enfrentamento da atual pandemia, o Congresso Nacional e o Poder Executivo federal aprovaram a Lei n. 13.979, de 06 fevereiro de 2020, com atualizações em decorrência das Medidas Provisórias ns. 926 (20 de março), 927 (22 de março) e 928 (23 de março), além de regulação pelo Decreto n. 10.288, de 22 de março de 2020. Do conjunto destas leis se extrai quais são, na dicção de emergência do momento, as chamadas atividades essenciais.
A partir dessa legislação federal reconhecendo o estado de calamidade pública nacional, ainda que para os fins da LRF, e face à definição constitucional da competência da União para legislar em matéria trabalhista, não compete aos Estados e aos Munícipios intervir em matéria trabalhista, mesmo que declarem estado de calamidade local.
Isso não impede, vale ressalvar, que Estados e Municípios adotem medidas de sua competência com reflexos em relações empresariais e trabalhistas, desde que essas medidas observem os limites de atuação impostos por aquela legislação federal.
O tema recebe uma importante ressalva decorrente do entendimento sedimentado pelo Supremo Tribunal Federal:
A Súmula Vinculante n. 38 diz que “é competente o Município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial.” Essa súmula tem eficácia relativizada pelo exame das atividades que sofrem regulação específica por lei Estadual ou Federal, conforme Súmula n. 419 do mesmo Tribunal: “Os Municípios têm competência para regular o horário do comércio local, desde que não infrinjam leis estaduais ou federais válidas.”
Os serviços prestados aos cidadãos, sob a forma de exploração econômica ou não, podem ser classificados em três planos distintos:
a. serviços concedidos, autorizados e permitidos pela União e/ou agências reguladoras;
b. atividades essenciais, sejam as tipificadas originariamente na Lei n. 7.783/1989 (Lei de Greve), sejam aquelas complementarmente catalogadas no Decreto n. 10.288/2020; e
c. demais atividades privadas.
Os serviços concedidos, autorizados e permitidos e as atividades essenciais (“a” e “b” acima) recebem direta incidência do previsto na Súmula n. 419 do STF. As demais atividades privadas (“c”) ficam sem essa proteção.
Por fim, reputamos importantes duas considerações:
- Pode ocorrer de a ordem do poder público disciplinar sobre as atividades essenciais prevendo a necessidade de adoção de um plano de contingência, com medidas tais como a ampliação do espaço físico entre os empregados, o fornecimento de equipamentos de proteção específicos etc. Se entendida válida a ordem geral, essas medidas serão de observância obrigatória e demandam cuidado especial das empresas.
- Assim como o estado de calamidade se assenta sobre a premência de um enorme conflito social, cujo enfrentamento demandará conflitos naturalmente reflexos, incide com ainda mais força o dever de todos de buscar a paz social. É nesse espírito, da menor conflitualidade possível e da busca da segurança, que recomendamos às empresas a abertura de diálogos com o Poder Público, na busca permanente da solução negociada.