24 mar MEDIDA PROVISÓRIA 927 DE 2020 (atualizada) E IMPACTO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO
Com o objetivo de criar alternativas trabalhistas para enfrentamento da crise e do estado de calamidade pública, o Governo Federal editou a MP 927 de 2020, que estabelece novas regras a serem aplicadas aos contratos de trabalho, que serão abaixo esquematizadas.
A presente análise é, em primeiro momento, preponderantemente descritiva e informativa, sem exame aprofundado de potenciais ilegalidades e/ou inconstitucionalidades. Também não é exaustiva, mas atenta às principais alterações.
Não estão sendo analisadas também, neste momento, medidas especiais para trabalhadores nos estabelecimentos de saúde, que serão objeto de outro exame específico.
I – PRAZO E ABRANGÊNCIA
A MP entra em vigor em 22 de março de 2020 e tem vigência por 60 dias, prorrogável por outros 60 dias, caso não seja convertida em lei.
As regras estabelecidas na MP vigoram durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo 6, de 20/032020. O estado de calamidade está previsto até 31/12/2020, segundo o Decreto.
Além disso, o art. 36 da Medida Provisória estabelece que “consideram-se convalidadas as medidas trabalhistas adotadas por empregadores que não contrariem o disposto nesta Medida Provisória, tomadas no período dos trinta dias anteriores à data de entrada em vigor desta Medida Provisória”. Com isso, eventuais ações que tenham sido adotadas pelas empresas antes da edição da lei estão convalidadas.
A MP abrange as relações de emprego em geral, inclusive rurais e domésticos (no que couber), e trabalho temporário.
II – MEDIDAS QUE PODERÃO SER ADOTADAS UNILATERALMENTE PELO EMPREGADOR
Teletrabalho
Dispõe o art. 4º que o empregador poderá “a seu critério” alterar o regime de trabalho de presencial para teletrabalho, bem como reverter o modelo, independentemente de ajuste individual ou coletivo. A MP determina que isso seja realizado com aviso prévio de 48 horas, que pode ocorrer, inclusive, por “meio eletrônico”.
Os meios para realizar o trabalho remoto serão objeto de ajuste escrito, que pode ocorrer em até 30 dias, contados da data da mudança. Caso o empregado não possua meios para realização de trabalho em casa, o empregador poderá fornecer equipamentos, em regime de comodato.
Caso não haja meios para realizar trabalho, a MP diz que o período em casa será computado como “tempo de trabalho à disposição empregador”, ou seja, não se trata de tempo que poderá ser objeto de futura compensação, inclusive a título de banco de horas. Nesse sentido, recomenda-se que o empregador, não tendo a possibilidade de concessão dos meios, não adote o modelo de teletrabalho e sim trate o afastamento como modelo de banco de horas.
A previsão pode incluir estagiários e aprendizes.
Por fim, a MP deixa claro que não se aplica aos trabalhadores em teletrabalho as regras relativas a teleatendimento e telemarketing.
Antecipação de férias individuais e flexibilidade para pagamento
O empregador poderá antecipar férias, ainda que o período aquisitivo não tenha transcorrido. O prazo para aviso é de 48 horas de antecedência e poderá haver comunicação por meio eletrônico.
As férias não poderão ser gozadas em períodos inferiores a 5 dias corridos.
Para os profissionais da saúde, poderá o empregador suspender as férias ou licenças não-remuneradas, com comunicação com 48 horas de antecedência.
Igualmente poderá o empregador suspender as férias ou licenças não-remuneradas nas hipóteses de atividades catalogadas no Decreto 10.282 (20 de março de 2020), conforme art. 3º, parágrafos primeiro e segundo:
Art. 3º As medidas previstas na Lei nº 13.979, de 2020, deverão resguardar o exercício e o funcionamento dos serviços públicos e atividades essenciais a que se refere o § 1º.
§ 1º São serviços públicos e atividades essenciais aqueles indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população, tais como:
I – assistência à saúde, incluídos os serviços médicos e hospitalares;
II – assistência social e atendimento à população em estado de vulnerabilidade;
III – atividades de segurança pública e privada, incluídas a vigilância, a guarda e a custódia de presos;
IV – atividades de defesa nacional e de defesa civil;
V – transporte intermunicipal, interestadual e internacional de passageiros e o transporte de passageiros por táxi ou aplicativo;
VI – telecomunicações e internet;
VII – serviço de call center;
VIII – captação, tratamento e distribuição de água;
IX – captação e tratamento de esgoto e lixo;
X – geração, transmissão e distribuição de energia elétrica e de gás;
XI – iluminação pública;
XII – produção, distribuição, comercialização e entrega, realizadas presencialmente ou por meio do comércio eletrônico, de produtos de saúde, higiene, alimentos e bebidas;
XIII – serviços funerários;
XIV – guarda, uso e controle de substâncias radioativas, de equipamentos e de materiais nucleares;
XV – vigilância e certificações sanitárias e fitossanitárias;
XVI – prevenção, controle e erradicação de pragas dos vegetais e de doença dos animais;
XVII – inspeção de alimentos, produtos e derivados de origem animal e vegetal;
XVIII – vigilância agropecuária internacional;
XIX – controle de tráfego aéreo, aquático ou terrestre;
XX – compensação bancária, redes de cartões de crédito e débito, caixas bancários eletrônicos e outros serviços não presenciais de instituições financeiras;
XXI – serviços postais;
XXII – transporte e entrega de cargas em geral;
XXIII – serviço relacionados à tecnologia da informação e de processamento de dados (data center) para suporte de outras atividades previstas neste Decreto;
XXIV – fiscalização tributária e aduaneira;
XXV – transporte de numerário;
XXVI – fiscalização ambiental;
XXVII – produção, distribuição e comercialização de combustíveis e derivados;
XXVIII – monitoramento de construções e barragens que possam acarretar risco à segurança;
XXIX – levantamento e análise de dados geológicos com vistas à garantia da segurança coletiva, notadamente por meio de alerta de riscos naturais e de cheias e inundações;
XXX – mercado de capitais e seguros;
XXXI – cuidados com animais em cativeiro;
XXXII – atividade de assessoramento em resposta às demandas que continuem em andamento e às urgentes;
XXXIII – atividades médico-periciais relacionadas com o regime geral de previdência social e assistência social;
XXXIV – atividades médico-periciais relacionadas com a caracterização do impedimento físico, mental, intelectual ou sensorial da pessoa com deficiência, por meio da integração de equipes multiprofissionais e interdisciplinares, para fins de reconhecimento de direitos previstos em lei, em especial na Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência; e
XXXV – outras prestações médico-periciais da carreira de Perito Médico Federal indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
§ 2º Também são consideradas essenciais as atividades acessórias, de suporte e a disponibilização dos insumos necessários a cadeia produtiva relativas ao exercício e ao funcionamento dos serviços públicos e das atividades essenciais.
Dispõe a MP que o empregador poderá pagar o 1/3 de férias após a concessão, até a data prevista para pagamento do 13º salário (que, neste caso, presumimos, é a da primeira parcela, ou seja, até 30/11/2020).
O pagamento das próprias férias, da mesma forma, está flexibilizado: poderá ocorrer até o 5º dia útil subsequente ao da concessão.
Solicitando, o empregado, a conversão de dias de férias em abono de que trata o art. 143 da CLT, competirá ao empregador a concordância ou não.
Concessão de férias coletivas
O empregador poderá conceder férias coletivas, com notificação prévia de 48 horas, ficando flexibilizada a regra legal que prevê 15 dias para notificação.
As empresas estão dispensadas de comunicar ao órgão de fiscalização e ao sindicato.
No entanto, considerando a recomendação geral do Escritório a respeito da participação da entidade sindical neste momento excepcional, é recomendável que essa comunicação seja feita, ainda que não obrigatória.
Aproveitamento e antecipação de gozo de feriados não religiosos
A MP diz que os empregadores poderão antecipar o gozo dos feriados “não religiosos” federais, estaduais e municipais. Devem notificar os trabalhadores, podendo ser por meio eletrônico, com pelo menos 48 horas de antecedência, indicando expressamente os feriados que serão aproveitados.
A antecipação de feriados religiosos dependerá da concordância do empregado e segue tratada adiante.
Diferimento do recolhimento do FGTS
Os empregadores estão autorizados a suspender os depósitos do FGTS dos meses de março, abril e maio (com vencimentos respectivos em abril, maio e junho).
Esses recolhimentos poderão ser realizados posteriormente, de forma parcelada, sem multas e demais encargos previstos em lei, em até 6 parcelas mensais e consecutivas, a contar de julho de 2020.
Caso haja rescisão do contrato de trabalho, o empregador ficará obrigado ao recolhimento integral, no prazo de lei, ainda sem encargos e multa.
Extensão provisória da incidência de acordos e convenções coletivas de trabalho
Os acordos e convenções coletivas de trabalho que venceram ou vencerão no prazo de 180 dias a contar de 22 de março de 2020 poderão ser prorrogados a critério do empregador, pelo prazo de 90 dias. Com isso, os benefícios previstos em negociação coletiva poderão ser mantidos, sem risco de incorporação ao contrato de trabalho. Veja-se que essa ultratividade é uma opção das empresas. Caso optem, recomendamos que a prorrogação seja expressamente comunicada aos trabalhadores.
Em existindo ambiente de diálogo com a entidade sindical, e considerando a recomendação geral do Escritório a respeito do sindicato neste momento excepcional, é recomendável a formalização de um termo de entendimento.
III – MEDIDAS QUE DEVEM SER ADOTADAS POR AJUSTE CONTRATUAL INDIVIDUAL EXPRESSO
Antecipação de férias futuras
Diz a MP que empregado e empregador poderão negociar a antecipação de períodos futuros de férias, mediante acordo individual escrito. Isso significa férias ainda não adquiridas, nem parcialmente.
Antecipação de feriados religiosos
A antecipação de feriados religiosos dependerá da concordância do empregado, ou seja, de ajuste individual escrito.
Banco de horas
O art. 14 da MP prevê a possibilidade de adoção de banco de horas por acordo coletivo ou individual. Sob o ponto de vista da segurança jurídica, sempre opinamos que o banco de horas estabelecido por negociação coletiva é o mais indicado. De qualquer sorte, caso constituído o banco de horas por acordo individual, diversamente do que previsto no art. 59, § 6º, da CLT, o ajuste deve ser formal, o que pressupõe por escrito.
De qualquer sorte, a MP – assim como também a CLT desde a Reforma Trabalhista – prevê a possibilidade por acordo individual, com a concessão de folgas e a compensação no prazo de até 18 meses (prazo este específico da MP), contados da data do encerramento do estado de calamidade pública.
A compensação, quando realizada, deverá respeitar os limites legais, ou seja, o trabalho das horas compensadas jamais poderá exceder duas diárias, observado o limite legal de 10 horas trabalhadas por dia.
CANCELADA: suspensão do contrato de trabalho para qualificação do trabalhador (lay off)
O art. 18 da medida provisória previa a suspensão do contrato de trabalho – ou seja, a paralisação das suas duas obrigações principais, dar trabalho e pagar salário –, ordinariamente regrada pela CLT no art. 476-A.
A CLT condiciona o lay off a negociação coletiva. A MP definia a possibilidade de suspensão por acordo individual escrito com o empregado ou com grupo de empregados, com previsão de ajuda compensatória mensal, sem natureza salarial, em valor livremente negociado, sem incidência de FGTS, recolhimentos previdenciários, imposto de renda e tampouco formarem, esses valores, base para pagamentos de outras parcelas trabalhistas.
Esse art. 18, no entanto, foi revogado pelo art. 2º da Medida Provisória 928, de 23 de março de 2020.
IV – MEDIDAS QUE APENAS PODERÃO SER ADOTADAS POR NEGOCIAÇÃO COLETIVA
Redução de salário com redução de jornada
Ao contrário da expectativa criada pelo Governo Federal em sucessivas manifestações dos seus representantes, a MP não trata da hipótese de redução de salário com redução de jornada por acordo individual.
Com isso, essa medida continua, nos termos do art. 7º, IV, da CF/88 primariamente condicionada à negociação coletiva, embora haja leitura possível do art. 503 da CLT no sentido de que, em situação de força maior, seja viável por decisão unilateral do empregador.
Sob o ponto de vista jurídico preventivo, contudo, estamos recomendando que esta medida extrema seja adotada mediante prévia negociação coletiva, alertando que, pela Lei 13.4672017, ela deve vir acompanhada de cláusula de garantia de emprego durante o período da redução.
Essa recomendação decorre, em especial, da circunstância da própria MP, em seu art. 2º, determinar o respeito aos limites constitucionais.
Todas as outras medidas não previstas na MP ou, mesmo previstas, a serem adotadas de forma diversa
Há diversas outras medidas que podem ser utilizadas em momentos como este, em especial considerando a preponderância normativa estabelecida aos acordos e convenções coletivas de trabalho.
O diálogo entre empresas ou sindicatos patronais e os sindicatos de trabalhadores, mais do que nunca, é fundamental para que se encontrem soluções que, ao mesmo tempo, protejam os empregos e viabilizem a continuidade das empresas.
Daí nossa firme recomendação de que as empresas mantenham permanente e aberto diálogo com os sindicatos de trabalhadores e seus dirigentes.
V – OUTRAS MEDIDAS E DISPOSIÇÕES RELEVANTES
Suspensão de prazos em processos administrativos
Ficam suspensos os prazos processuais de apresentação de defesas e recurso no âmbito da fiscalização do trabalho e do FGTS, por 180 dias a partir de 22 de março de 2020.
Definição do coronavírus para fins ocupacionais
Os casos de contaminação por coronavírus não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação de nexo causal.
Atuação da fiscalização trabalhista
A fiscalização trabalhista, no prazo de 180 dias, deverá atuar de forma orientadora, exceto quanto à irregularidades graves (falta de registro de empregado, situações de risco grave e iminente, acidente de trabalho fatal e trabalho infantil ou em condições análogas a de escravo).
Suspensão da obrigatoriedade de exames médicos ocupacionais, clínicos e complementares, exceto dos exames demissionais
A MP prorroga a realização de exames médicos ocupacionais, exceto aqueles decorrentes da extinção do contrato e por recomendação do médico coordenador do PCMSO, quando houver risco à saúde do empregado.
Nesse sentido, recomendamos que a decisão da empresa seja tomada em consonância com a área de medicina do trabalho, dando especial atenção às situações nas quais a manutenção do trabalho se dê com exposição a agentes ou ambientes com potencial gravosidade.
O presente texto data de 24/03/2020 e poderá ser atualizado à medida da evolução ou novas modificações dos regramentos expedidos pelas autoridades públicas.