08 maio COVID-19 e caracterização de doença ocupacional: o que (não) diz a decisão do STF ao suspender a validade dos artigos 29 e 31 da MP 927/2020?
Com o objetivo de criar alternativas trabalhistas para enfrentamento da crise e do estado de calamidade pública, o Governo Federal editou a MP 927/2020 estabelecendo novas regras para os contratos de trabalho. A MP abrange as relações de emprego em geral, inclusive rurais e domésticos (no que couber), e trabalho temporário.
No dia 29.04.2020, em sessão realizada por videoconferência, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria, com prevalência do voto do Min. Alexandre de Moraes, suspendeu a validade dos artigos 29 e 31 da MP 927/2020, que estabeleciam:
Art. 29. Os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal.
Art. 31. Durante o período de cento e oitenta dias, contado da data de entrada em vigor desta Medida Provisória, os Auditores Fiscais do Trabalho do Ministério da Economia atuarão de maneira orientadora, exceto quanto às seguintes irregularidades:
I – falta de registro de empregado, a partir de denúncias;
II – situações de grave e iminente risco, somente para as irregularidades imediatamente relacionadas à configuração da situação;
III – ocorrência de acidente de trabalho fatal apurado por meio de procedimento fiscal de análise de acidente, somente para as irregularidades imediatamente relacionadas às causas do acidente; e
IV – trabalho em condições análogas às de escravo ou trabalho infantil.
A suma do julgamento diz o seguinte:
O Tribunal, por maioria, negou referendo ao indeferimento da medida cautelar tão somente em relação aos artigos 29 e 31 da Medida Provisória 927/2020 e, nos termos do voto do Ministro Alexandre de Moraes, Redator para o acórdão, suspendeu a eficácia desses artigos, vencidos, em maior extensão, os Ministros Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski, nos termos de seus votos, e os Ministros Marco Aurélio (Relator), Dias Toffoli (Presidente) e Gilmar Mendes, que referendavam integralmente o indeferimento da medida cautelar. Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello. Plenário, 29.04.2020 (Sessão realizada inteiramente por videoconferência – Resolução 672/2020/STF).
Síntese da decisão do STF
A decisão em comento foi proferida no julgamento de medida liminar em sete ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) ajuizadas em face do texto da MP 927¹, sob o fundamento comum de que a referida MP afronta direitos fundamentais dos trabalhadores.
O Min. Marco Aurélio, relator, votou pela manutenção do indeferimento das liminares, por entender que não há na norma transgressão a preceito da Constituição Federal, uma vez que buscou atender uma situação emergencial e preservar empregos, voto acompanhado integralmente pelos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes. No entanto, prevaleceu a divergência aberta pelo Min. Alexandre de Moraes, sob o fundamento de que as regras dos artigos 29 e 31 fogem da finalidade da MP de compatibilizar os valores sociais do trabalho com a livre iniciativa.
O Min. Alexandre de Moraes destacou que o artigo 29, ao prever que casos de contaminação pelo coronavírus não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação de nexo causal, ofende o direito de inúmeros trabalhadores de atividades essenciais que continuam expostos ao risco, como médicos, motoboys, dentre outros. Por sua vez, o artigo 31, que restringe a atuação dos Auditores-Fiscais do Trabalho, segundo o Ministro, atenta contra a saúde dos empregados, não auxilia o combate à pandemia e diminui a fiscalização no momento em que vários direitos trabalhistas estão em risco.
Acompanharam este voto os ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Carmen Lucia, Ricardo Lewandowski e Luiz Fux. Para o ministro Luiz Roberto Barroso, deveria ser conferida intepretação conforme a Constituição apenas para destacar que, caso suas orientações não fossem respeitadas, os Auditores poderiam exercer suas demais competências fiscalizatórias².
Em que pese vencido na maior parte, cabe destacar trecho do voto do Min. Edson Fachin na ADI 6342, na parte em que trata dos artigos 29 e 31, igualmente defendendo sua suspensão, nos seguintes termos:
Nas ADIs 6.342, 6.344, 6.346, 6.352 e 6.354, aponta-se a inconstitucionalidade do disposto no artigo 29 da Medida Provisória n. 927/2020 vem fundada na dificuldade de os empregados comprovarem o nexo causal da doença causada pelo novo coronavírus, considerando o fato notório e consabido de que a transmissão da doença é comunitária e exponencial.
Afirma-se que o regime de responsabilidade estabelecido na norma impugnada exime o empregador de tomar todas as medidas de saúde, higiene e segurança necessárias à proteção dos trabalhadores, afrontando, assim, direito fundamental à redução de riscos inerentes ao trabalho, constantes do artigo 7º, XXII, da CRFB.
Assim está posta a norma impugnada:
Art. 29. Os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal.
Exigir-se que o ônus probatório seja do empregado, diante da infecção e adoecimento pelo novo coronavírus, não se revela com medida adequada e necessária à redução dos riscos dos trabalhadores quanto à doença deflagrada pelo novo coronavírus. Se o constituinte de 1988 reconheceu a redução de riscos inerentes ao trabalho como um direito fundamental social do trabalhador brasileiro, obrigando que os empregadores cumpram normas de saúde, higiene e segurança no trabalho, certamente ele previu que o empregador deveria responsabilizar-se por doenças adquiridas no ambiente e/ou em virtude da atividade laboral.
A previsão de responsabilidade subjetiva parece uma via adequada a justificar a responsabilização no caso das enfermidades decorrentes de infecção pelo novo coronavírus, de forma que se o empregador não cumprir as orientações, recomendações e medidas obrigatórias das autoridades brasileiras para enfrentar a pandemia pelo novo coronavírus, deverá ser responsabilizado.
Assim, o ônus de comprovar que a doença não foi adquirida no ambiente de trabalho e/ou por causa do trabalho deve ser do empregador, e, não, do empregado, como estabelece a norma impugnada.
O artigo 29 da Medida Provisória n. 927/2020 afronta o que dispõe o art. 7º, XXII, da CRFB: “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”, invertendo o ônus probatório no caso específico da infecção por coronavírus.
Diante do que exposto, divirjo do e. Ministro Relator e julgo procedente o pedido de suspensão, por inconstitucionalidade, do art. 29 da Medida Provisória n. 927/2020.
(…)
A suspensão da prática fiscalizatória por parte dos Auditores Fiscais do Trabalho pode estimular o descumprimento imediato e irremediável das normas que regulam as relações trabalhistas, especialmente aquelas que dizem respeito à segurança e saúde dos trabalhadores, afrontando o que dispõe o artigo 7º, XXII, da CRFB.
A ausência de fiscalização por parte dos auditores fiscais do trabalho pode ser confundida com autorização para os empregadores descurarem do cumprimento de seus deveres de proteger a saúde e integridade física dos empregados no ambiente laboral, o que seria uma inversão das práticas necessárias em tempos de estado de emergência em saúde e calamidade públicas, decorrentes da pandemia do novo coronavírus.
A Constituição brasileira de 1988 foi muito explícita quanto aos cuidados e quanto à preservação do maior e melhor equilíbrio possível na relação entre empregado e empregador, resguardando, de forma direta, direitos fundamentais relacionados à relação laboral, para o que contribuem sobremaneira a fiscalização e atuação, preventiva e repressiva, dos auditores do trabalho.
Suspender as atividades de fiscalização, mitigando seus poderes institucionais de prevenção e repressão de práticas em desconformidade com a legislação de regência é instituir estado de exceção que não se coaduna com a Constituição, nem com o estado de emergência de saúde e calamidade pública que se está a experienciar, notadamente em face do dever constitucional estabelecido no artigo 7º, XXII, da CRFB: “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”.
Também aqui entendo caracterizada a indigitada inconstitucionalidade do artigo 31 da Medida Provisória n. 927/2020, pelo que o pedido cautelar é procedente, no ponto.
Ressalvamos que o julgamento de 29.04.2020 se restringe à apreciação de pedido liminar. As ADIs continuarão tramitando para a devida prestação jurisdicional meritória.
Contexto jurídico subjacente e prévio
A definição primária exposta pelo STF deve ser compreendida à luz de algumas circunstâncias jurídicas:
a. a Constituição Federal (art. 7º, XXII) assegura, ainda que em norma de eficácia contida, mas de aplicação conformadora nas relações sociais, o princípio da máxima proteção, o que acaba por ter na legislação infraconstitucional (CLT, NRs, etc) a definição de condutas específicas do empregador;
b. a Lei n. 13.979/2020 preceitua o dever de proteção ao cidadão em todos os seus aspectos sociais, também englobando a sua condição de trabalhador-empregado, a ponto de conceituar como interrupção do contrato individual de trabalho aquelas ausências no período dito de “quarentena”;
c. o STF, em tese de repercussão geral (tema 932) assentada no leading case RE 828040, assentou ser aplicável o art. 927 do Código Civil – é dizer, a possibilidade de incidência de responsabilidade objetiva do empregador – quando ocorrente exposição do trabalhador a “risco especial”;
d. houve veto integral do Sr. Presidente da República (Mensagem n. 211, de 22 de abril de 2020) ao Projeto de Lei n. 702/2020, que concedia ao empregado a faculdade de não apresentar atestado médico nos afastamentos de até 7 (sete) dias.
Neste quadro, prévio à decisão do STF, está delineado que o empregador deve envidar esforços para a proteção da higidez da saúde do empregado, seja pela adequada manutenção do meio-ambiente laboral, seja pela concessão de equipamentos de proteção, e a exposição a situação de risco especial pode atrair a potencial incidência da responsabilidade objetiva, inclusive no tocante aos acidentes de trabalho.
Suspensão da validade dos artigos 29 e 31 da MP 927
Em relação ao artigo 29, o STF assentou a posição segundo a qual:
(i) a manutenção das atividades contratuais durante o período de pandemia,
(ii) gerará presunção relativa acerca da catalogação do COVID-19 como doença ocupacional,
(iii) facultado ao empregador a oportunidade de comprovação do rompimento de responsabilidade.
Dito de outro modo, a grande alteração jurídica que se efetiva com esta suspensão, caso confirmado o fundamento do voto vencedor, está no ônus probatório: enquanto o artigo 29 da MP conduzia ao entendimento de que era do empregado o ônus de comprovar o nexo de causalidade, por se tratar de fato constitutivo do direito (arts. 818 da CLT e 373, I, do CPC), com sua suspensão o ônus recai sobre o empregador, o qual deve demonstrar que cumpriu com todas as determinações em matéria de saúde e segurança do trabalho e oriundas da Organização Mundial da Saúde, com isso afastando o nexo de causalidade. Sobre essa demonstração nos debruçamos um pouco mais ao final deste.
A decisão liminar, referendada pelo Plenário do STF, não diz que o COVID-19 é doença ocupacional, mas sim julgou inconstitucional o artigo de medida provisória que o dizia não ocupacional.
Vale a legislação já anteriormente vigente. O enquadramento, a cargo do INSS, poderá ser feito caso a caso ou por presunção (através do chamado nexo técnico epidemiológico – NTEP). Se for feito por presunção (é dizer, a contaminação pelo COVID-19 teria decorrido do trabalho), poderá ser objeto de prova em sentido contrário, a cargo do empregador.
No mesmo passo, a suspensão do artigo 29 não conduz à responsabilidade objetiva do empregador quanto aos casos de contaminação dos empregados por COVID-19, considerando não haver norma expressa e específica neste sentido. A responsabilidade do empregador para os casos de COVID-19 permanece, como regra, subjetiva.
Nesse contexto, as recomendações para minimizar riscos jurídicos consistentes no enquadramento da contaminação por COVID-19 como doença ocupacional (artigo 29) ou decorrentes de fiscalizações dos Auditores-Fiscais do Trabalho (artigo 31), em primeira análise, convergem para o mesmo sentido: adoção de práticas recomendadas pela OMS em matéria de medicina, profilaxia e saúde em geral.
Em suma, cresce em importância a geração e guarda de evidências (documentais, escritas ou eletrônicas, em qualquer mídia) dos procedimentos de proteção da saúde levados a efeito pelo empregador durante a pandemia, a saber (dentro outras específicas da realidade de cada empresa):
- utilização de um canal aberto a todos os empregados e com possibilidade de acesso remoto para reporte de sintomas ou situações de risco de contágio pelo COVID-19;
- divulgação interna de cartilha com medidas de prevenção aplicáveis a cada setor ou atividade;
- cancelamento de viagens, treinamentos, visitas e reuniões presenciais, que passam a ser realizadas preferencialmente via telefone ou vídeo;
- definição de protocolo de atendimento a pessoas no departamento médico, incluindo descontaminação de ambientes e quarentena;
- dispensa de comparecimento às dependências da empresa dos trabalhadores pertencentes aos grupos de risco, pela adoção de medidas como home office, licença remunerada ou suspensão do contrato de trabalho;
- disponibilização de álcool em gel (70%) em todos os locais de acesso de fábricas e escritórios;
- permanente limpeza dos ambientes;
- verificação de temperatura dos empregados quando do ingresso nos ambientes de trabalho, com encaminhamento médico quando constatado qualquer sintoma;
- disponibilização de máscaras e luvas, a critério médico;
- ajuste do espaço em locais de alimentação, com instruções claras sobre distância através de marcações no piso e nas mesas, assim como reforço para a lavagem das mãos antes do acesso ao restaurante;
- manutenção de um ambiente arejado naturalmente;
- adequação de eventuais serviços de transporte disponibilizados pela empresa, com limpeza a cada viagem, espaçamento dos assentos e disponibilização de álcool em gel.
Em todos esses procedimentos devem ser envolvidas as áreas de segurança e saúde e – reforçamos – devem ser guardadas evidências suficientes do cumprimento dessas medidas protetivas da saúde dos empregados.
Guedes, Pedrassani Advogados
1 Ajuizadas pelo Partido Democrático Trabalhista (ADI 6342), pela Rede Sustentabilidade (ADI 6344), pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos (ADI 6346), pelo Partido Socialista Brasileiro (ADI 6348), pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e pelo Partido dos Trabalhadores (PT) conjuntamente (ADI 6349), pelo partido Solidariedade (ADI 6352) e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (ADI 6354).
2 Ficaram vencidos em maior parte os ministros Edson Fachin, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski, que, além da suspensão de outros dispositivos impugnados, votaram também pela suspensão da eficácia da expressão “que terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos” contida no artigo 2º da MP. Para eles, os acordos individuais entre empregado e empregador celebrados durante o período da pandemia, inclusive sobre regime de compensação e prorrogação da jornada de trabalho, serão válidos nos termos do entendimento firmado pelo STF no julgamento da ADI 6363, quando foi mantida a eficácia da MP 936/2020.